Vindo de uma tradição dos comics, David S. Goyer – autor da série - transforma a personagem numa espécie de super-herói e compara-o ao alter ego de Iron Man. Tony Stark seria, na verdade, a perfeita encarnação do homem do Renascimento: uma parte génio, uma parte louco, uma parte playboy. Essas características resumiam-se numa expressão da época: sprezzatura. Trata-se de uma espontaneidade ensaiada e de uma naturalidade estudada que suportam um discurso persuasivo e uma ironia defensiva. Estes traços, tal como definiu Baldassare Castiglione, deveriam ser apanágio de todo o cortesão florentino.

Contudo tal carácter seria mais apropriado ao artista maior do Maneirismo, Benvenuto Cellini, que dominou as várias artes e se tornou igualmente conhecido pelo seu desempenho na guerra, pelas suas querelas violentas e pelas suas paixões desabridas que não poupavam donzelas nem rapazes. Da Vinci, por seu turno, foi o homem da cosa mentale: um intelectual sereno, oprimido pela sua (homo)sexualidade, defensor da observação e do estudo.

Em entrevista, Goyer afirma ter feito uma investigação sobre este mestre da Renascità e cita Giorgio Vasari - o pai da História da Arte - que extensamente descreve a sua vida e obra no livro «Le vite de' più eccellenti pittori, scultori e architettori» (1568). Mesmo tomando em conta as liberdades artísticas e adaptações que são permitidas ao argumentista, custa-nos a crer que tal obra tivesse sido consultada... Se em termos psicológicos já vimos que a personagem se adapta mais a um Cellini, em termos físicos seria muito mais semelhante ao querubim louro de olhos azuis Eros Vlahos, que aqui interpreta o estadista Niccolò Machiavel transformado – bizarramente - em pagem do artista.

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Quanto à narrativa, decidiram juntar um mistério e uma demanda. O mistério acontece em torno de uma ordem secreta que toma o nome de «Sons of Mithras» e que, supostamente, será uma continuação do Culto Mitráico. Este culto, hermético e esotérico, teve a sua origem na Pérsia e foi muito bem acolhido pelos Romanos sendo praticado por todo o Império (inclusivé na área que é hoje Portugal) entre os séc.I e V D .C.. Com uma iconografia extremamente complexa e com significados ainda hoje em grande parte por decifrar, este culto é terreno fértil para interpretações e adaptações.

O autor americano vai buscar uma das figuras secundárias do culto: uma estranha figura com corpo de homem e cabeça de leão que se identifica como o Cronos Mitráico. Em termos académicos persistem muitas dúvidas quanto ao seu real significado, mas sabe-se que está ligado a uma ideia de tempo e de memória. Estes dois conceitos tomam um lugar entral no desenrolar da narrativa da série como se vai percebendo pela melopeia repetida pelos «Sons of Mithras».
Soma-se ainda a importância das duas chaves que a figura segura. Já se sabe que Da Vinci possui uma e que a sua nemésis, o terrível Girolamo Riario (Blake Ritson), tem a segunda. Estas chaves darão acesso ao «Book of Leaves» que ambos irão tentar encontrar partindo numa demanda pela sua posse. Historicamente não existe nenhum «Book of Leaves» (Livro das Folhas) relacionado com os Mistérios Mitráicos e, a julgar pelo que já foi até agora revelado, não se deve tratar de um mero herbário. Esta será a obra que contém a resolução dos mistérios da História e da memória justificando o enredo.

Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência

Desengane-se, porém, quem pensar que irá aprender algo sobre o Leonardo da Vinci, a Florença Quinhentista ou os Mistérios Mitráicos. Em termos de rigor histórico poderíamos citar a frase introdutória das séries de ficção: «qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência»...

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O interesse da série irá residir precisamente naquilo que lhe dá título: as lutas internas de Da Vinci, os seus fantasmas. Tal como muitos outros artistas, Leonardo encontra-se numa situação em que tem que fazer concessões e capitulações para agradar aos que financiavam a sua arte. Torna-se, simultaneamente, Humanista e Engenheiro de Guerra, vendo-se obrigado a criar armas cada vez mais mortíferas para poder financiar a sua arte, a sua investigação e o seu trabalho em prol do bem da Humanidade.
Surge o primeiro conflito interno: Quanto estará disposto a ceder para atingir os seus fins?
A resposta poderá estar junto dos seus antinómicos amigos: Machiavel e Zoroaster (Gregg Chillin). A filosofia do primeiro é já sobejamente conhecida pela máxima que o tornou célebre: «os fins justificam os meios». A posição do segundo, pelo menos para o grande público, não será tão evidente. Zoaraster é um outro nome de Zaratrusta, o profeta persa fundador do Zoroatrismo. Sendo uma religião definida pelo dualismo Bem–Mal, defende que a única forma de podermos organizar o Mundo é colocar sempre o Bem acima do Mal. Assim sendo, cada acção do homem tem uma responsabilidade social. De nada servirão as obras maiores do génio florentino se para isso outros humanos tenham que sofrer.

O segundo conflito é algo mais freudiano. Trata-se da relação de Da Vinci com a sua mãe, que mais não é que uma vaga memória da tenra idade de quando o abandonou; e do seu pai, que o tem por bastardo e nele vê as razões do seu próprio fracasso e abandono. O próprio Freud não resiste a esta fantasia e escreve o texto que tantas críticas lhe valeram: «Uma recordação da juventude de Leonardo Da Vinci» (1910). Goyer, contudo, não parece tê-lo ignorado.
Percorre-se assim um caminho estreito entre a banalidade do efeito fácil de sexo e violência e a possibilidade de uma obra complexa sobre a natureza humana. O que virá? Não o sabemos. Eu, por mim, espero sofregamente pelo próximo episódio!

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