Fazer futurologia quando se fala de indústria do cinema e da TV é um jogo arriscado: a morte do cinema em sala já foi anunciada tantas vezes e tantas vezes já a vimos não concretizar-se, a passagem da TV linear para o streaming é uma realidade mas nada garante que a última vá aniquilar a primeira. Podemos olhar para a bola de cristal e prever que o futuro trará a condenação de alguns meios, mas provavelmente o futuro nos provará que voltámos a errar.

E se a indústria do entretenimento está sempre em constante mudança, 2020 e a pandemia de COVID-19 trouxeram uma mudança que ninguém esperava: salas de cinema fechadas, grandes estreias sucessivamente adiadas, boom (ainda maior) nas subscrições de streaming durante o confinamento, produções de filmes e séries paradas. E agora, mesmo na lenta reabertura, os avanços e recuos nos números de contágio dos países afetam diretamente a forma com vamos continuar por bastante tempo a consumir cultura e entretenimento.

Nos EUA, os cinemas começam lentamente a reabrir e a tentar exibir estreias de peso. Em Portugal, a primeira estreia capaz de mobilizar grande audiência no cinema aconteceu apenas a 26 de Agosto com “Tenet”, de Christopher Nolan, ainda que as salas tenham tido ordem de reabertura a 1 de junho. Em julho, as salas de cinema portuguesas receberam perto de 78 mil espectadores, uma quebra de 95,6% face ao mesmo período de 2019.

Com o boom dos serviços de streaming e a guerra entre os vários players desse mercado cada vez mais acesa, a pandemia até ajudou a acelerar as subscrições para quem ainda não os usava. Essa transição e a necessidade de cada vez mais fazermos escolhas sobre onde vemos os nossos filmes e séries – o orçamento familiar mensal não chegará na maior parte dos casos para tudo – é um caminho de progresso que se continuará a fazer nos próximos anos e que ajudará a mudar as dinâmicas de consumo de conteúdo.

Não vamos ler a sina ao entretenimento, mas, somando as tendências que já estavam em cima da mesa e juntando-lhes o impacto da crise de 2020, apontamos cinco caminhos que deverão consolidar-se nos próximos anos - talvez nas próximas décadas.

Conteúdo é rei, o meio é acessório

Netflix

Se outras gerações valorizavam a experiência da sala de cinema ou de, mesmo em casa, ver um filme ou uma série num ecrã com qualidade, a geração Z veio mostrar que isso vai deixar de ser um fator a considerar daqui em diante. Mesmo não generalizando, será uma minoria que, daqui para a frente, dará importância ao meio onde o conteúdo é veiculado.

A ocasional ida ao cinema continuará a acontecer, mas regra geral, o meio será cada vez mais acessório, o que importa cada vez mais é o conteúdo. E se, para esta audiência, for preciso ver uma série no telemóvel, assim seja. Os players já acompanham essa tendência, estreando diretamente em serviços de streaming produções que, noutros tempos, passariam primeiro pelo cinema.

Veja-se o exemplo recente de “Roma” (2018), de Alfonso Cuarón, que teve estreia direta na Netflix e apenas exibição limitada em salas de cinema para poder ser candidato aos Óscares. Não foi selecionado para a edição desse ano do Festival de Cannes por o serviço não aceitar em estreá-lo primeiro em sala, mas não só foi acolhido de braços abertos em Veneza como venceu o Leão de Ouro, o prémio máximo do festival. E foi nessa altura que o então presidente do júri, o realizador Guillermo Del Toro, disse uma frase chave, não só para a qualidade do cinema de um modo geral, mas que ilustra bem o que os próximos anos consolidarão: “acho que os filmes são julgados por aquilo que existe naquele rectângulo (referindo-se ao ecrã). Podemos debater e ter uma opinião sobre tudo o resto que existe no exterior, mas a qualidade dos filmes e da narrativa é aquilo que nos vai ocupar. É apenas naquele rectângulo que permitimos que exista vida no cinema”.

A própria crescente qualidade das produções de séries da última década, que mostra que a distância entre cinema e TV está cada vez mais esbatida, continuará a contribuir para que se veja o conteúdo que se quer, em qualquer momento e em qualquer suporte.

Convergência e Streaming Wars

Disney+

Marcas globais como, por exemplo, a Disney mostram-nos, cada vez mais, que a convergência é o caminho futuro: para além de todas as chancelas que comprou (Marvel, Star Wars ou Fox), aos históricos negócios em parques temáticos, cinema e TV, juntou-se o streaming com o Disney+, naquela que é a grande aposta de futuro do estúdio do Rato Mickey. Também as operadoras de telecomunicações passaram a incluir nos seus pacotes serviços de streaming ou On-demand para além da TV Linear, numa estratégia de “one stop shop” para todo o conteúdo de entretenimento.

As guerras no mercado do streaming intensificar-se-ão cada vez mais: o Disney+ “esvaziou” a maioria do conteúdo das marcas Disney dos outros serviços de streaming ou canais de TV, tornando-se no único serviço onde os espectadores poderão encontrar aquele conteúdo, e começou mesmo a fechar canais lineares para potenciar o serviço, como no caso do encerramento do Disney Channel no Reino Unido.

A Netflix continua a apostar nas produções originais em grande quantidade - alguns dirão, em menor qualidade do que noutros serviços, mas o volume conta na guerra do streaming – com o desafio acrescido de não ter um catálogo passado de produções para “encher” o serviço como outros dos seus concorrentes. Até quando o negócio aguentará orçamentos elevados para tantas produções originais só o tempo dirá.

Netflix, Disney+, Apple TV+ ou Amazon Prime, entre outros: todos querem (e precisam de) ser o rei do streaming.

E se, nos próximos anos, um player conseguir negociar os interesses dos vários concorrentes de streaming e, na mesma plataforma e tendo de pagar apenas uma subscrição, disponibilizar bundles de serviços? Negociação difícil – alguns dirão quase impossível – mas possível caminho de futuro para chegar ao topo.

Tecnologia: um constante impulsionador da indústria

O Congresso (2013)
O Congresso (2013)

No filme “O Congresso”, de 2013, realizado por Ari Folman, o cineasta preoconiza na ficção um futuro que poderá não estar assim tão distante. No filme, a atriz Robin Wright, no auge da sua carreira, registava uma versão digital de si própria para ser usada em filmes futuros, eliminando o factor envelhecimento do processo de casting e de escolha de papéis.

Nos últimos anos, assistimos a vários “rejuvenescimentos” digitais impressionantes em vários filmes. Robert Downey Jr., Michael Douglas ou Robert Redford nos filmes do Marvel Cinematic Universe, ou Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci em “O Irlandês”, de Martin Scorsese, por exemplo, recuaram em várias cenas muitas décadas sem que as “costuras” fossem perceptíveis. E se as próximas décadas tornarem a realidade do filme de Ari Folman verdadeiramente real e tivermos interpretações dos nossos atores preferidos geradas por Inteligência Artificial no seu aspeto mais jovem? Talvez pareça ainda um futuro distante mas não é um cenário impossível.

A tecnologia 5G será outro dos fatores que alterará profundamente o negócio do entretenimento nos anos que aí vêm. A realidade virtual que vimos no filme de Steven Spielberg “Ready Player One”, em que os utilizadores podem entrar num mundo virtual e, através de um Avatar e um fato com sensores, viver, sentir e experimentar tudo aquilo que por lá se passa, poderá estar ao nosso alcance num futuro não muito distante. O passo inicial para a desbloquear é a implementação da tecnologia 5G.

Há já empresas a testar colocar o espectador no meio de um filme, com recurso à realidade virtual. Imagine estar dentro de uma cena de um filme e interagir com outras personagens. A velocidade do 5G vai facilitar esse tipo de projetos.

Conteúdos (cada vez mais) feitos à minha medida

Black Mirror
"Bandersnatch"

Os algoritmos dos serviços de streaming são provavelmente o melhor exemplo de como um sistema pode ajustar-se e fazer recomendações à medida do utilizador a cada produção a que assiste. Esta tendência no entretenimento não esmorecerá, pelo contrário, continuará a trabalhar no aperfeiçoamento e os serviços que conseguirem dar aos seus clientes o conteúdo mais aproximado aos seus gostos em cada momento ganharão vantagem.

O próprio conteúdo poderá ser moldado ao gosto do espectador através de interação ao vivo. Recordemos o exemplo recente do filme “Bandersnatch”, da Netflix, enquadrado no universo da série “Black Mirror”, que permitia ao utilizador escolher ativamente em vários momentos do filme os caminhos que gostaria de seguir, numa espécie de “Agora Escolha” dentro de um filme. Muitos espectadores viram-no vezes sem conta até esgotar os vários caminhos possíveis.

O futuro poderá ser uma mistura das duas coisas: através de software que tem em conta a nossa pegada digital e o nosso contexto e as nossas preferências, com conteúdos dentro de um determinado conteúdo feitos especificamente a pensar em nós a serem automaticamente desbloqueados. Caminhamos para o “smart content”, conteúdo que muda porque conhece quem o está a ver.

COVID-19: o impacto que ninguém poderia adivinhar

Sala de cinema COVID-19

Cinemas fechados, produções paradas, estreias adiadas. 2020 e a COVID-19 trouxeram à indústria do entretenimento uma dor de cabeça que ninguém esperava e uma crise cujo impacto se fará sentir por muitos anos. Os calendários das grandes estreias foram completamente alterados – ainda estão a ser - e algumas, como a estreia de “Mulan” nos Estados Unidos, desistiram de arrancar a sua carreira no cinema e foram colocadas diretamente em serviços de streaming, neste caso o Disney+. O primeiro grande blockbuster a chegar às salas de cinema pós-confinamento foi “Tenet”, a 26 de agosto, o novo filme de Christopher Nolan e os números não foram desanimadores: no primeiro fim de semana de exibição, ainda sem a estreia nos Estados Unidos, o filme arrecadou 53 milhões de dólares em bilheteira (44 milhões de euros) e em Poortugal somou 38.367 espectadores.

Nos Estados Unidos, os cinemas começaram lentamente a reabrir mas com poucas estreias “frescas” para mobilizar espectadores o número 1 no box office americano chegou a ser em meados de julho "O Império Contra-Ataca", o segundo filme da saga “Star Wars”, estreado em 1980. Na China, os primeiros cinemas começaram a reabrir em julho e estima-se que possam demorar até 10 anos a regressar aos números habituais de espectadores. Em Portugal, o valor de receitas de exibição cinematográfica alcançado em julho foi de 382,4 mil euros, uma redução de 96,1% em relação ao mesmo mês de 2019.

Por outro lado, houve quem beneficiasse com a pandemia: no segundo trimestre de 2020, a Netflix angariou em todo o mundo mais 10 milhões de subscritores, um crescimento que o serviço justificou com o período de confinamento. No mesmo período, a Disney teve prejuízos em todas as suas linhas de negócio, excepto no streaming, com o Disney+ a ultrapassar a marca dos 50 milhões de subscritores em todo o mundo.

A retoma será lenta, faseada e provavelmente com recuos e a pandemia poderá deixar marcas duradouras. A exibição de cinema poderá nunca conseguir voltar aos resultados pré-COVID e com isso comprometer a sobrevivência de muitas salas. As estratégias de lançamento de filmes deixarão de ser por defeito no circuito de cinema e depois home vídeo (seja On Demand, streaming ou TV) e passarão a ser variadas.

A estreia de “Mulan”, que acontecerá diretamente no Disney+, pelo menos nos EUA, com um preço de 29,99 dólares, será um bom teste de águas num modelo de negócio em que toda a receita vai a 100% para os bolsos da Disney, já que os restantes elos da cadeia (exibidores no caso das salas de cinema, operadoras no caso do Video On Demand). As próprias cerimónias de prémios e os festivais de cinema, que tiveram de se adaptar a edições digitais, poderão repensar as suas edições futuras noutros formatos adaptados ao mundo pós-pandemia.

Se a crise significará a morte ou o declínio de algum dos agentes da indústria será algo que os anos provarão, mas as marcas (e as aprendizagens) deixadas em 2020 serão inegáveis. Talvez estas tendências não demorem 25 anos a ver a luz do dia, nem sequer cinco, mas num exercício arriscado, é este o retrato possível.

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