Enquanto os anos 1950 representava uma altura de erosão da cultura patriarcal e uma mudança radical de costumes em muitos centros urbanos do mundo ocidental, o Alentejo vivia sob forças e circunstâncias de tempos muito mais recuados.

Entre os aspetos mais acentuados desta ordem social estava o fosso político e económico entre o patrão e os operários – e é esta relação desigual e injusta que Sérgio Tréfaut retrata na sua nova proposta de cinema que se chama "Raiva".

Para o realizador de “Alentejo Alentejo”, o novo trabalho marca o regresso ao universo da ficção depois de o seu último filme, o documentário “Treblinka”, preservar a memória do Holocausto em tempos de ressurgimento da extrema-direita.

Em "Raiva", transporta para o cinema a obra “Seara de Vento”, que rendeu ao seu autor, Manuel da Fonseca, dissabores suficientes no período em que a lançou – justamente o do Estado Novo que retrata. A obra, por sua vez, era inspirada num acontecimento verídico, a “tragédia de Beja”, ocorrida em 1933.

A narrativa é em flashback e começa com um tiroteio com contornos do velho western, onde um homem executa sumariamente outros dois – antes de se barricar em casa com a família. A partir daí, o argumento do próprio Tréfaut reconstrói a história até esse momento dramático.

O filme vale-se das imagens a preto e branco de Acácio de Almeida, um dos mais destacados diretores de fotografia portugueses do momento, para recriar um rebuscado Alentejo marcado por sombras, pelo agreste da paisagem e pelas figuras prostradas e incapazes de romper com o ciclo da sua completa ruína.

Elas tentam. O protagonista (Hugo Bentes), uma figura ostracizada pela elite local por “falar demais”, tenta reagir como pode ao isolamento a que foi submetido; a sua filha (Rita Cabaço), por seu lado, tenta organizar a luta operária. Mas onde todos os destinos convergem, incluindo os da sogra e da esposa do protagonista (vividas por Isabel Ruth e Leonor Silveira, respetivamente) é na extrema penúria e na opressão atroz por parte dos senhores locais.

"Raiva" parece teletransportado das atmosferas de um certo neorrealismo e cabe ao espectador fazer o paralelo com os dias de hoje. Na sua nota de intenções, o cineasta admite ter feito um “filme fora de moda baseado num livro fora de moda”, onde a opção pelo preto e branco pretende “afastá-lo do televisivo”.

Ao mesmo tempo, fala do abismo entre ricos e pobres que tende a se repetir infinitamente na história. Por isso “Raiva” é um filme sem heróis, dá conta apenas de um eterno “loop” do qual não é possível fugir.

TRAILER "RAIVA".