Desta vez o protesto não aconteceu na passadeira vermelha, mas no próprio filme. O realizador Kleber Mendonça Filho apresentou esta quarta-feira (15), em Cannes, "Bacurau", uma produção em que há muito sangue e grande carga política.

A história passa-se num futuro muito próximo, na localidade sertaneja de Bacurau, que desaparece do mapa. Os telemóveis param de funcionar, deixando os moradores isolados. Os assassinos têm carta branca para matar toda a gente.

O realizador Kleber Mendonca Filho (centro) com Alli Willow e Udo Kier.

A terceira longa-metragem de Mendonça, codirigida por Juliano Dornelles, o seu diretor artístico até agora, compete pela Palma de Ouro, três anos depois de participar do festival com "Aquarius".

Na altura, o cineasta protagonizou, ao lado do elenco, um protesto na passadeira vermelha que ficou célebre para denunciar "um golpe de Estado" contra a ex-presidente Dilma Rousseff.

"Este ano não haverá protesto" contra o presidente Jair Bolsonaro, disse à AFP Mendonça horas antes da estreia. "O filme é suficiente", explicou.

"Índios" com olhos azuis

"Bacurau", carregado de cenas truculentas e uma estética inspirada nos filmes de oeste dos anos 1970, pode ser encarado como um tributo às comunidades do interior do Brasil, que nesta produção não se deixam intimidar pelo grupo de assassinos americanos que trabalham para as autoridades locais.

"A diferença em relação aos westerns tradicionais é que os índios eram filmados de longe, só era possível ouvi-los gritar", explicou Dornelles. "Em Bacurau os índios são os louros com olhos azuis, mas nós nos aproximamos deles e os fizemos falar".

Com a participação de Sônia Braga - protagonista de "Aquarius", e do alemão Udo Kier-, Mendonça afirmou que esta produção serve "para suportar a loucura que está acontecendo agora" com Bolsonaro.

O realizador recordou que o argumento foi escrito anos antes do atual presidente brasileiro assumir o cargo.

Dornelles reconheceu que o argumento original tinha muito mais humor, mas os acontecimentos no país acabaram convertendo o filme numa história "muito mais séria".

Mendonça acrescenta: "Por exemplo, o Rio [de Janeiro] agora vive um momento deprimente, a nível municipal, estadual e federal. As pessoas estão a mudar-se para o Recife [a sua cidade natal] como se fossem refugiados e estamos a acolhê-las, porque de alguma maneira continuamos protegidos cultural e politicamente".

A poção mágica do Astérix

Apesar disso, os realizador deixam-se levar atrás da câmara pelos caminhos da imaginação. Convertidos em resistentes, os habitantes de Bacurau contra-atacam a sangue frio graças a uma potente droga que os impede de sentir medo para ser tão sanguinários como os seus agressores.

"É como a poção mágica do Astérix!", disse Dornelles.

"Bacurau" foi exibido no segundo dia do Festival de Cannes, após a sessão de abertura com "Os Mortos Não Morrem", de Jim Jarmusch. Ambos têm em comum o facto de terem a história centrada em cidades do interior, cujos habitantes lutam com determinação contra invasores, que no caso da produção americana são zombies.

A produção brasileira e "Dor e Glória", de Pedro Almodóvar, são os único filmes ibero-americanos na competição oficial.

Curiosamente, Almodóvar e Mendonça foram os dois últimos cineastas ibero-americanos a concorrer à Palma de Ouro, ambos em 2016. Mas o prémio ficou com "Eu, Daniel Blake", do britânico Ken Loach, que também está de volta à competição com "Sorry we missed you".