"Delírio" e um futuro "perigoso": do ator Ricardo Darín à pianista Martha Argerich, artistas argentinos e internacionais acusam o presidente Javier Milei de desgastar a cultura num país cujo cinema, música e literatura são reconhecidos no mundo inteiro.

Desde dezembro, a 'motosserra' que o líder ultraliberal usa para reduzir os gastos do Estado para dominar uma inflação interanual de 288% levou à paralisação de programas e instituições de fomento cultural.

Somados à redução dos salários e à recessão, os cortes afetam, entre outros, o cinema, a indústria literária e a música.

No caso do cinema, a instituição responsável pelo seu fomento, o Incaa, demitiu 170 dos seus 645 empregados, suspendeu o pagamento de horas extraordinárias e interrompeu a receção de projetos durante 90 dias.

“Acreditar que o que vem a acontecer no nosso país há muitas décadas, com a destruição da educação, a destruição do trabalho real, o número de pessoas que estão abaixo da linha da pobreza, tudo coisas que são lamentáveis, horrorosas, dependem de um setor que é o artístico, é um delírio. Simplesmente um delírio”, disse Ricardo Darín ao diário Clarín.

"Seria bom que ambos os lados estivessem bem informados e se sentassem à mesma mesa de discussão, pois queremos construir um bom país daqui para frente”, acrescentou, apelando a que “se compreendam as posições e se alcance um ponto de equilíbrio e não se deem ouvidos às loucuras que se dizem por aí”.

Paula Orlando, uma produtora e realizadora audiovisual de 31 anos que trabalha há 12 no setor, disse que "a cada dia, o panorama é mais obscuro".

"Estou a pensar deixar o país para poder trabalhar na indústria audiovisual, as esperanças do setor na Argentina são muito baixas", contou a cineasta à France-Presse (AFP).

Milei diz que o governo deve escolher entre 'financiar filmes que ninguém vê' ou 'dar comida às pessoas'.

Javier Milei

O Incaa, suportado principalmente com impostos sobre as bilheteiras e 25% das receitas da Enacom (a Autoridade Nacional de Comunicações), co-financia dezenas de filmes por ano, entre elas oito nomeadas aos Óscares, incluindo as vencedoras "A História Oficial" (1985) e "O Segredo dos Seus Olhos" (2009).

A icónica Mirtha Legrand, conhecida há décadas como apresentadora de televisão, classificou como "terrível" a situação do Incaa: "Dá uma sensação de rancor, de não querer o cinema argentino, de não valorizá-lo".

À beira do precipício

Cineastas como Pedro Almodóvar e Aki Kaurismäki expressaram a sua preocupação em janeiro e, este mês, os irmãos Dardenne, Claire Denis e Viggo Mortensen publicaram um artigo intitulado "O cinema argentino está à beira do precipício".

Mas enquanto o cinema é o mais afetado, a música e o mundo do livro também sofrem o impacto.

Em janeiro, músicos como Charly García e Fito Páez estiveram entre os milhares de artistas que assinaram uma carta rejeitando um projeto de Milei, conhecido como a 'lei omnibus', que na sua versão original fechava os órgãos de fomento à cultura e revogava a lei de defesa da atividade livreira.

No setor editorial, o presidente da Câmara Argentina do Livro, Martín Gremmelspacher, garantiu à AFP que a revogação dessa lei prejudicaria as pequenas e médias livrarias e considerou que, até agora, o governo mostrou "uma forte tendência contra as indústrias culturais".

Gremmelspacher assegurou que, face a uma forte recessão, as vendas de livros caíram 30% tanto em janeiro quanto em fevereiro, em comparação com os mesmos meses de 2023.

Futuro perigoso

As indústrias culturais geram pelo menos 300 mil empregos formais, embora a informalidade torne difícil medir a sua dimensão total, disse à AFP o ex-diretor nacional de indústrias culturais (2019-2023), Luis Sanjurjo, professor de políticas culturais na Universidade de Buenos Aires.

Para o professor, "a grande armadilha é acreditar que o mercado substitui o Estado e em nenhum país capitalista sério do mundo existe a ausência do Estado" no desenvolvimento de políticas para as pequenas e médias empresas culturais.

Além disso, Sanjurjo considerou que o governo travou uma batalha 'com a cultura porque entende que é um dos fatores que ameaça o que conseguiram instalar a partir da circulação de certos discursos em redes sociais'.

Em fevereiro, Milei publicou no X (ex-Twitter) um comunicado intitulado "Desmontando o Gramsci cultural", que visava os artistas que recebem apoio do Estado: "É uma arquitetura cultural projetada para sustentar o modelo que beneficia os políticos".

O ministro da Cultura, Leonardo Cifelli, afirmou ao jornal La Nación que a interrupção dos auxílios é devido às questões de "transição administrativa", sem esclarecer quando serão retomadas.