Independente dos méritos cinematográficos que o levaram à seleção principal da última edição do Festival de Cannes, em maio de 2016, "Aquarius" é o mais importante filme brasileiro do ano passado.

Não por uma questão de arte (onde o juízo é sempre subjetivo), mas pela repercussão: às polémicas envolvendo política num país atualmente marcado pelos discursos polarizados, soma-se um enorme sucesso de bilheteira. Num país, como de resto todos os outros, com um sistema de distribuição estrangulado pelo cinema 'made in Hollywood', o filme logrou reunir 400 mil espectadores.

As confusões começaram ainda na Croisette: um protesto organizado pela equipa contra o 'golpe' então em curso para derrubar Dilma Rousseff em plena passadeira vermelha atingiu uma repercussão internacional. A seguir, veio a represália: com o novo governo já instituído, "Aquarius" ficou fora das nomeações ao Óscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira – uma vez que estas indicações são feitas pelos órgãos oficiais de cada país.

Kléber Mendonça Filho, que já havia dado nas vistas com “O Som ao Redor”, o seu trabalho anterior, está em Lisboa para divulgar seu trabalho. Nesta conversão com o SAPO Mag, abordou temas políticos, mas também o seu filme: “Aquarius” conta a história de uma sexagenária (Sónia Braga, muito elogiada no papel) que resiste como a última moradora de um edifício em ameaça de demolição. Neste processo arranja uma guerra contra uma enorme construtora que já tomou posse de todos os outros apartamentos.

Um dos primeiros aspetos que chama a atenção no filme é o facto de a protagonista ser burguesa e bem instalada, contrariando um certo cânone do cinema brasileiro dos últimos anos que estabelece que só os pobres ou a classe média baixa devem ser retratados…

Queria muito ir contra isso. Sim, nós temos uma carga pesada demais em relação à representação dos desprotegidos, dos pobres. Dentro de um universo comparativo, claro que ela [a personagem de Sónia Braga] termina sendo a parte mais fraca em relação à construtora, mais frágil, mas não é assim tão pobre. Na verdade, enquanto fazia o filme tive sempre em mente uma obra de Matthew Robbins, de 1987, “O Milagre da Rua 8”. É sobre um prédio muito pequeno em Nova Iorque e uma construtora que quer a sua demolição. Então moravam lá uns velhinhos ‘bem velhinhos’, uma mãe mexicana solteira, etc. A parte engraçada é que tem uns extraterrestres que aparecem para ajudar. É divertido mas achava que era muito mais interessante fazer um filme sobre uma mulher, para já alguém que os homens achariam que seria fácil de destruir por causa do machismo e que, num mundo normal, seria uma cliente desta construtora, alguém que poderia comprar-lhes um apartamento. Mas a questão é que ela não está interessada. Ela tem uma proposta de mercado, que todo mundo acha que é irrecusável, incluindo a própria filha, mas diz não, gerando uma série de contrariedades. Outro aspeto é que estava determinado no argumento que a casa dela seria boa. Num outro tipo de filme ela estaria ‘caindo aos pedaços’, com o papel da parede a descolar-se, com baratas, ratos. Não queria nada disto, pretendia antes que o espectador olhasse para esse apartamento e pensasse: ‘Ele está ótimo’. Não é um palácio, mas tem personalidade, é aconchegante, tem estilo. Queria ir contra o que se espera.

créditos: Mag / Roni Nunes

Num plano mais longínquo, o interesse do cinema brasileiro pelos mais desfavorecidos começa no Cinema Novo mas, mais recentemente, parece uma reação às telenovelas, que só mostravam uma faceta 'clean' da sociedade brasileira…

Exato. E isso vai entranhando na perceção que as pessoas têm da sua dramatização nos ecrãs. Não acho isso bom, até porque o vocabulário acaba por ficar muito restrito e daí que as pessoas tiveram uma reação de surpresa perante isto.

E às vezes parece que os próprios festivais internacionais de cinema esperam isso…

Sim, até por causa do impacto gigantesco que o “Cidade de Deus” teve na imagem do cinema e da sociedade brasileira no mundo. É um filme que até hoje continua sendo um embaixador do cinema brasileiro e que foi confirmado depois pelo “Tropa de Elite”.

Você conta em “Aquarius” uma história de trincheira, de cerco…

Um dos meus filmes favoritos, que já era uma referência para mim em “O Som ao Redor”, é “Assalto à 13ª Esquadra”, filme de 1976 do John Carpenter, que se passa numa esquadra, com pessoas a tentar entrar contra outras que se estão a defender. Claro que aqui não há violência física, nem armas, mas ela está ali defendendo aquela área muito bem delimitada, está tentando agarrar-se naquele lugar. Talvez seja isso que leve o filme para um campo triste ou perturbador, de sabotagem pensada. Se ela não tivesse entrado em choque com a empresa, não teria essa sensação tão grande de estar entrincheirada. O problema é quando o mundo externo tenta agressivamente interferir.

Este nome, “Aquarius”, tem alguma relação com os mitos de mudança das décadas de 60, uma vez que está a contar uma história de valores que estão sob ataque?

Não, o que eu realmente pensei foi nos nomes de prédios daquela região, construídos entre os anos 40, 50, 60. Eles tinham uma tradição muito curiosa de batizar os prédios com nomes relacionados com a água, como Nautilus, Pacífico, Atlântico, Jangada, Pescador… Aquarius era um destes nomes. Escrevi o argumento pensando no Caiçara, que foi demolido antes das filmagens e perdi o meu local [de rodagem]. Mas há uma coisa curiosa em relação à esta questão. Enquanto escrevia o argumento não pensava na Sónia, tinha uma ideia completamente idiota de convidar alguém da rua para entrar no filme [risos]. Mas quando ela entrou percebi uma coincidência muito interessante: ela fez parte do elenco da primeira montagem teatral de “Hair” no Brasil, nos anos 70, o que significa que durante mil apresentações ela cantou “Aquarius” nua no palco com um grande grupo de pessoas [risos]. Foi engraçado, mas uma coincidência.

Falando no assunto, como foi a entrada da Sónia Braga no projeto? Desistiu de procurar a atriz na rua?

[risos] Sim, era uma ideia estudantil! Aliás, a minha produtora, que também é minha esposa, Emilie [Lesclaux], além de alguns amigos, disseram-me logo ‘sai dessa!’ [risos]. Em relação à Sónia, ela era a número um da lista, enviámos o argumento e ela aceitou. Percebi que ela tinha entendido tudo logo na primeira leitura. Depois foi para o Recife três semanas antes das filmagens. Ela não tinha cultura de ensaios, algo que achei bem estranho tendo em conta a sua longa carreira. O processo foi fantástico, ficámos amigos.

Aliás, há uma busca muito grande no cinema alternativo de hoje pela construção quase artesanal da direção de atores, o que também tem a ver com uma certa obsessão pelo realismo…

Não tenho essa obsessão. Só quero que você enquanto espectador veja uma cena e não fique tenso, preocupado com os atores, do estilo ‘como-foi-difícil-dizer-essa-frase-agora’ [risos]. Na história do cinema há Bresson, que era incrível a fazer isso e, neste sentido, não falo de precariedade dramática, mas de alguém que está 'off' na cena. Então, eu ensaio para entender a cena ou mesmo para ver se ela resulta, pois pode funcionar apenas no papel. Mas sei do que você está a falar, há de facto uma busca obsessiva pelo naturalismo. Da minha parte procuro apenas uma boa cena e isso vem, muitas vezes, de uma atuação naturalista.

A nível de linguagem usam alguns artifícios de forma ostensiva, como o zoom…

Isto já estava no “Som ao Redor”. Tenho um prazer especial em rever grandes filmes americanos dos anos 70, de autores como Brian de Palma, Robert Altman, Steven Spielberg, Sam Peckinpah, Michael Cimino, Sidney Lumet, Don Siegel, Clint Eastwood… Realmente gosto de acreditar que os meus dois filmes são modernos, feitos hoje, mas que têm alguma coisa, um tom que é diferente do que você vê o tempo todo. O recurso ao zoom é um deles. No “Aquarius” temos o 'split dyoptic', que é um adaptador que se coloca na lente e cria duas distâncias focais na cena em que ela está na rede e se vê o Diego ao fundo e os dois estão em foco. Não é natural, é artificial, mas intrigante. De Palma, Sérgio Leone, Spielberg já usaram isso… É como se estivesse a ver um filme à moda antiga, um pouco 'retro', mas ao mesmo tempo moderno. Só espero é que não seja considerado uma coisa 'hipster' [risos]. Também há a câmara fixa, a câmara na mão é algo que me irrita profundamente [risos].

Mas também é um recurso muito contemporâneo…

Mas já é uma tendência há 20 anos e é impressionante como não vai embora! [risos]. Depois do Dogma, que usava câmaras digitais e que já estava, por sua vez, “vampirizando” a Nouvelle Vague, começou isto. Dá vontade de dizer: ‘Pára esta câmara! Estou tonto!’ [risos].

Deixei estas questões para o fim, imagino que já as tenha respondido muitas vezes… O que ainda há para dizer sobre o que aconteceu no ano passado, começando com Cannes, passando pelos Óscares e pelo atual governo…?

O nosso protesto em Cannes foi o de cidadãos brasileiros feito dentro do âmbito democrático, sobre coisas que não achávamos corretas. E ainda não achamos, nomeadamente a forma como o processo de 'impeachment' foi montado e executado. Expressamo-nos livremente, alcançamos uma repercussão gigante em termos internacionais e no Brasil, muitas pessoas apoiaram, outras protestaram – neste último caso, aliás, até tentaram fazer um boicote que só deu mais energia ao filme. Depois houve a questão do Óscar, que foi uma retaliação com base na ideia de não deixar que o projeto fosse o representante brasileiro aos prémios. Curiosamente, no entanto, o filme já teve distribuição em 70 países e não paro de viajar para apresentá-lo. Resumindo, foi um ano de acontecimentos incríveis, mas que também prova que ninguém segura uma obra de cultura. Neste momento, "Aquarius" tanto já pode ter estreado na Tailândia quanto na Polónia, está fora de controlo. Já no Brasil estreou em 154 salas e teve 400 mil espectadores, uma obra de duas horas e meia e com uma protagonista de 65 anos.

Muito se tem falado da vitalidade do cinema brasileiro que, de uns anos para cá, está finalmente a cruzar as fronteiras. Só no Festival de Berlim este ano eram nove filmes…

Eram 12, se contar as curtas. Semanas antes, em Roterdão, eram sete. São os frutos de uma política de anos a investir na diversidade. Neste momento, há uma grande preocupação, uma enorme tensão, ninguém sabe o que vai acontecer. Claro que não faria qualquer sentido mexer nesta política, mas no Brasil tem muita coisa que não faz sentido, hoje em dia…!

Trailer "Aquarius".

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